Palavra

IV

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Ao lembrar daquela mulher
lembro da cidade onde sucumbimos
ao sangue de nossas horas.

Da revoada ao leito do mar
rugindo a garganta
da noite desperta.

No caminho de sua casa
consumíamos as calçadas
para ver raízes brotando.

Quantos impedimentos imputei,
e mesmo assim o desejo lambia
descontrolado a lâmina dos segredos.

E se havia um mar, havia um rio,
calmo como meu medo
pela fragilidade de seu corpo.

Calmo como a transformação
desse medo em um esparso
crepúsculo anil.

Em pouco tempo segui seu rastro
pelas montanhas. Soube onde
nascia aquele rio.

Escorríamos de volta.
Aquela mulher e as águas da cidade
tornaram-se a mesma coisa.

Juntos tomávamos banho
nessas águas, até que se formasse
o silêncio naquela cidade.

PALAVRA

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A palavra esquecida
evapora improvável.

Incinerado neste
caminho estranho
permaneço quieto.

A treva deglutida
pela boca calada
borbulha onde
não se sabe.

Sigo o método da dor
e faço da palavra
uma antiga opressão.

Desperto
a raiz tempestuosa
que cresce
no tempo da escrita

Deixo-a destruir
sonhos inúteis
que lutam por nomes,
pois serei agora
um mar intransponível,

o signo infinito de
idiomas mortos
na língua improvável
de cada palavra.

A disputa das eras – William Carlos Williams

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Há um antagonismo entre as eras. Cada uma deseja escravizar as outras. Cada uma deseja triunfar. É muito humano e completamente incompreensível…Se lemos sozinhos [sem escrever] ficamos convencidos de que não estamos totalmente vivos, que somos de algum modo menos que eles — os que viveram antes de nós.

Fixada em palavras — nos maiores clássicos — está a maioria, senão toda a estupidez que nos enfeitiça, que nos faz querer escrever, que nos inspira a criar. Ao ler, enquanto estamos embebidos pela sabedoria das eras, estamos ao mesmo tempo embebidos pela morte e a imbecilidade, a rudeza escravizante das eras.

Nós somos o centro da escrita, cada homem para si, mas ao mesmo tempo para sua era.

— William Carlos Williams, The Embodiment of Knowledge (1974, p. xi) [Tradução própria]

O ARTISTA

É preciso, afinal
nascer vencido pela solidão.

Eu poderia lhes dizer sobre
a coragem do esquecimento.

Poderia lhes dizer ainda sobre
o inconstante corpo dos poetas.

Mas o louvor da impiedade
é para poucos.

E quem, afinal
sabe o que isso significa?

Não há hinos ou bandeiras
nos recantos obscuros da verdade,

apenas idiomas em urros
desabados sob o tempo do cruel.

Como sofrem essas
lindas bestas em criação.

Tudo, afinal
para sentir algo se dizendo.

E o que é dito persegue
as alcunhas torcidas do artista

como cobras camufladas
num pasto alagado.

Não há fuga
para o belo.

A LIBERDADE

Não há o que dizer.
Sou hoje o rastro desse segredo.
Meu corpo é uma despedida
na alvorada da miragem.
Penso na noite interminável.
Não há nada a dizer.

O tempo não precisa da vida,
por isso perder é tão sublime.
Não mais lutar com a memória.
Tenho em seres esquecidos
meus amores mais profundos.

Aprender o esquecimento
da próxima liberdade,
pois nisso ela se resume:
saber sem não mais lembrar.

Fernando Pessoa e a sabedoria no sofrimento

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Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do universo, mas na da nossa mesma alma, é o principio da sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita. Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de infinito, nem a nossa dor vale mais que ser uma dor que nós temos.

—  Fernando Pessoa (Livro do Desassossego)

Neblina

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Luz da noite,
prata azul lunar
nas caudas negras de teu rosto.
Fendas cintilantes
entremeiam nossos atritos.
Músculos, fibras tesas,
gestos cálidos, líquen.
Somos agora justificativa
para o acaso que nos une,
escolta poeril da terra
que flutua no lúmen.
Apenas palavras abstensas
(lastros abertos ao fogo)
poderiam dizer tais coisas,
e por isso sou um náufrago
dessa liberdade, a devastação
no pesadelo de homens comuns.
Saber melhor depois do fim,
lembrar de reinos duplicados,
caçar abismos em limite,
sangrar a crueldade dos caminhos,
limpar chagas com novos hinos.
Voltam assim tuas safras
colhidas por lâminas cegas
e as penumbras desse ardor
caem sobre meus pés como
o solstício de um nítido dilúvio,
lá onde imprevisíveis lampejos
inscrevem nas pedras
a tua cuidadosa presença.