Em abril desse ano lancei meu primeiro livro de poemas, “A Carne da Era”, pela Lumme Editor. É composto por 30 poemas e tem o prefácio assinado por Claudio Daniel.
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Em abril desse ano lancei meu primeiro livro de poemas, “A Carne da Era”, pela Lumme Editor. É composto por 30 poemas e tem o prefácio assinado por Claudio Daniel.
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Ao lembrar daquela mulher
lembro da cidade onde sucumbimos
ao sangue de nossas horas.
Da revoada ao leito do mar
rugindo a garganta
da noite desperta.
No caminho de sua casa
consumíamos as calçadas
para ver raízes brotando.
Quantos impedimentos imputei,
e mesmo assim o desejo lambia
descontrolado a lâmina dos segredos.
E se havia um mar, havia um rio,
calmo como meu medo
pela fragilidade de seu corpo.
Calmo como a transformação
desse medo em um esparso
crepúsculo anil.
Em pouco tempo segui seu rastro
pelas montanhas. Soube onde
nascia aquele rio.
Escorríamos de volta.
Aquela mulher e as águas da cidade
tornaram-se a mesma coisa.
Juntos tomávamos banho
nessas águas, até que se formasse
o silêncio naquela cidade.
A palavra esquecida
evapora improvável.
Incinerado neste
caminho estranho
permaneço quieto.
A treva deglutida
pela boca calada
borbulha onde
não se sabe.
Sigo o método da dor
e faço da palavra
uma antiga opressão.
Desperto
a raiz tempestuosa
que cresce
no tempo da escrita
Deixo-a destruir
sonhos inúteis
que lutam por nomes,
pois serei agora
um mar intransponível,
o signo infinito de
idiomas mortos
na língua improvável
de cada palavra.
Há um antagonismo entre as eras. Cada uma deseja escravizar as outras. Cada uma deseja triunfar. É muito humano e completamente incompreensível…Se lemos sozinhos [sem escrever] ficamos convencidos de que não estamos totalmente vivos, que somos de algum modo menos que eles — os que viveram antes de nós.
Fixada em palavras — nos maiores clássicos — está a maioria, senão toda a estupidez que nos enfeitiça, que nos faz querer escrever, que nos inspira a criar. Ao ler, enquanto estamos embebidos pela sabedoria das eras, estamos ao mesmo tempo embebidos pela morte e a imbecilidade, a rudeza escravizante das eras.
Nós somos o centro da escrita, cada homem para si, mas ao mesmo tempo para sua era.
— William Carlos Williams, The Embodiment of Knowledge (1974, p. xi) [Tradução própria]
É preciso, afinal
nascer vencido pela solidão.
Eu poderia lhes dizer sobre
a coragem do esquecimento.
Poderia lhes dizer ainda sobre
o inconstante corpo dos poetas.
Mas o louvor da impiedade
é para poucos.
E quem, afinal
sabe o que isso significa?
Não há hinos ou bandeiras
nos recantos obscuros da verdade,
apenas idiomas em urros
desabados sob o tempo do cruel.
Como sofrem essas
lindas bestas em criação.
Tudo, afinal
para sentir algo se dizendo.
E o que é dito persegue
as alcunhas torcidas do artista
como cobras camufladas
num pasto alagado.
Não há fuga
para o belo.
Não há o que dizer.
Sou hoje o rastro desse segredo.
Meu corpo é uma despedida
na alvorada da miragem.
Penso na noite interminável.
Não há nada a dizer.
O tempo não precisa da vida,
por isso perder é tão sublime.
Não mais lutar com a memória.
Tenho em seres esquecidos
meus amores mais profundos.
Aprender o esquecimento
da próxima liberdade,
pois nisso ela se resume:
saber sem não mais lembrar.
Sombra sem alma do destino
cubra a luz do futuro
esse lugar infindável
onde alvorece a solidão
e angústias sem importância
abrigam os belos segredos
auroras e runúncias
no tempo do eterno
verdades sussuradas
por vidas impertencentes.
Considerar a nossa maior angústia como um incidente sem importância, não só na vida do universo, mas na da nossa mesma alma, é o principio da sabedoria. Considerar isto em pleno meio dessa angústia é a sabedoria inteira. No momento em que sofremos, parece que a dor humana é infinita. Mas nem a dor humana é infinita, pois nada há humano de infinito, nem a nossa dor vale mais que ser uma dor que nós temos.
— Fernando Pessoa (Livro do Desassossego)
Nem a totalidade, nem o indivisível são possíveis no homem.
— Gilbert Simondon
Luz da noite,
prata azul lunar
nas caudas negras de teu rosto.
Fendas cintilantes
entremeiam nossos atritos.
Músculos, fibras tesas,
gestos cálidos, líquen.
Somos agora justificativa
para o acaso que nos une,
escolta poeril da terra
que flutua no lúmen.
Apenas palavras abstensas
(lastros abertos ao fogo)
poderiam dizer tais coisas,
e por isso sou um náufrago
dessa liberdade, a devastação
no pesadelo de homens comuns.
Saber melhor depois do fim,
lembrar de reinos duplicados,
caçar abismos em limite,
sangrar a crueldade dos caminhos,
limpar chagas com novos hinos.
Voltam assim tuas safras
colhidas por lâminas cegas
e as penumbras desse ardor
caem sobre meus pés como
o solstício de um nítido dilúvio,
lá onde imprevisíveis lampejos
inscrevem nas pedras
a tua cuidadosa presença.