O fundo negro das folhagens
atravessa minha carne sóbria.
A sede de todos os corpos
ecoa nos vales turvos do tempo.
Asas de uma mariposa inflame:
trilhas fúlmegas de amor e crueldade.
O fundo negro das folhagens
atravessa minha carne sóbria.
A sede de todos os corpos
ecoa nos vales turvos do tempo.
Asas de uma mariposa inflame:
trilhas fúlmegas de amor e crueldade.
“Não acreditemos que por sermos menos brutais, menos violentos, menos inumanos do que aqueles que enfrentamos, nós prevaleceremos. A brutalidade, a violência e a inumanidade, possuem um prestígio imenso que os livros escolares escondem das crianças, que os homens feitos não confessam, mas que subsiste sempre. As virtudes contrárias, para que possuam um prestígio equivalente, devem ser exercidas de maneira constante e efetiva. Qualquer um incapaz de ser tão brutal, tão violento e tão inumano quanto um outro sem, no entanto, exercer as virtudes contrárias, é inferior a esse outro em força interior e prestígio; e não resistirá diante dele.”
— Simone Weil. Œuvres complètes II, p. 117. [tradução própria]
[…] “Supondo que em todas as épocas venerou-se a utilidade como a divindade suprema, de onde teria vindo a poesia? – essa ritimização da fala, que antes atrapalha do que promove a clareza da comunicação, e que, apesar disso, brotou e continua a brotar em todo lugar desse mundo, como que zombando de toda útil pertinência! […] mediante o ritmo, um pedido humano deveria inculcar mais profundamente nos deuses, depois que as pessoas notaram que a memória grava mais facilmente um verso que uma fala normal; também acreditaram que por meio do tique-taque rítmico podiam ser ouvidas a distâncias maiores; a oração ritmada parecia chegar mais perto do ouvido dos deuses. […] o ritmo é uma coação; ele gera o invencível desejo de aderir, de ceder […]. Quando era perdida a justa tensão e harmonia da alma, era preciso dançar, seguindo a cadência do cantor – era a receita dessa terapia. Melos [melodia] significa, conforme sua raiz, um calmante, não porque seja calmo em si, mas porque seus efeitos acalmam. Resumindo e perguntando: havia, para a antiga e supersticiosa humanidade, algo mais útil que o ritmo? […] sem o verso não se era nada, com o verso, quase um deus. Um sentimento assim fundamental não pode ser inteiramente erradicado – e ainda hoje, após milênios de combate a tal superstição, até o mais sábio entre nós é ocasionalmente turvado pelo ritmo. Não é divertido que mesmo os filósofos mais sérios, normalmente tão rigorosos em matéria de certezas, recorram a citações de poetas para dar força e credibilidade a seus pensamentos? – e, no entanto, uma verdade corre mais perigo quando um poeta a aprova do que quando a contradiz! Pois, como diz Homero: “Mentem demais os cantores!”.
[NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.]
Cada ventre na terra
é um sol no deserto,
dois pulmões inflados
pelo vento da miragem.
Arquipélagos virgens
de pontas rasas,
pés sangrados
no naufrágio escuro.
Cantos de batismo
para seres primitivos,
nada será como antes.
PERLONGHER, Néstor (org). Coração Transplatino: poesia neobarroca e rioplatense. São Paulo; Iluminuras, 1991.
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Pérola irregular, nódulo de barro: os caprichos deslumbrantes do barroco hispânico, recuperados do achatamento neoclássico, passando primeiramente pelos tópicos caribenhos da mão poderosa de José Lezama Lima e dando surpreendentes voltas por um Rio da Prata domingueiro e sensual, aportam nestas bárbaras praias do Brasil. Cartografia intensiva desse novo e potente movimento escritural, o neobarroco, que renova e leva a inefáveis alturas a poesia hispano-americana. Caribe Transplatino, organizado pelo poeta Néstor Perlogher, representa a primeira versão em português desses poetas indispensáveis: além do grande Lezama Lima, o cubano Severo Sarduy (que colocou em circulação o termo “neobarroco”), seu compatriota (radicado em Nova York) Josá Kozer, a poética revolucionária do argentino Osvaldo Lamborghini, o sensualismo de Néstor Perlongher e Roberto Echavarren, o preciosismo de Arturo Carrera, a concisão de Eduardo Milán e de Tamara Kamenszain, dispõem um arquipélago joiesco e multiform onde resplandece um sofisticado trabalho da letra, somado a uma sensibilidade exacerbada e fabulosa.
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digitalização: 300 dpi
cor: colorido
formato: PDF (A4)
paginação: 2 páginas por folha (horizontal)
título: Caribe Transplatino: poesia neobarroca e rioplatense.
autor: Néstor Perlongher (organizador)
editora: Iluminuras
isbn: 85-85219-43-2
idioma: Português
encadernação: Brochura
formato: 14 x 21
páginas: 133
ano de edição: 1991
edição: 1ª
COSTA, Horácio. SATORI. São Paulo; Iluminuras, 1989.
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“Os textos de Satory desenham o itinerário poético de um escritor brasileiro que decidiu destrinchar os impasses da modernidade mediante duas estratégias diversas, mas complementares. (…) Desde logo, se reconhecem os signos dessa sensibilidade no manejo da descontinuidade do discurso: giros imprevisíveis no tom, contradições e permutações verbais, espaços em branco e dispositivos tipográficos – estes tomados da poesia concreta -, incisões de palavras e textos exógenos, súbitas chamadas metapoéticas (…)”.
Irlemar Chiampi
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digitalização: 300 dpi
cor: colorido
formato: PDF (A4)
paginação: 2 páginas por folha (horizontal)
título: SATORI
autor: Horácio Costa
editora: Iluminuras
isbn: 85-85219-08-4
idioma: Português
encadernação: Brochura
formato: 15 x 21
páginas: 112
ano de edição: 1989
edição: 1ª
Durante algum tempo o lugar do sonho havia se perdido. Eu não poderia admitir a existência de alguma dimensão da vida que, uma vez impondo sua existência, não servisse a meu propósito ou, ao menos, não colocasse um novo – permitir isso seria separar a realidade em dois. Que ele fazia parte de um processo de elaboração isso já era sentido, mas se ele passava por aí, era preciso torná-lo uma prática mais precisa: pensamento (minha única realidade e propósito).
Nessa noite foi possível acompanhar a fundação de um novo lugar por esse esforço. Ao me debruçar, enquanto acordado, sobre a questão do medo, o sonho a continuou. Mas se havia algo inédito, era o fato dessa compreensão não surgir depois de acordar, a partir de uma reflexão sobre imagens, mas durante a experiência onírica, como problema. Havia parado de sonhar e, finalmente, começado a pensar dormindo. O tema em questão se apresentou na proliferação encadeada de diversas afirmações afetivas: água negra explodindo as laterais do navio, vale turvo de alturas desiguais, risco solitário de crianças. E, de repente, ao ser literal quanto a isso, a poesia da linguagem se desvela. Não por desejo, mas pela necessidade de ser mais preciso. É certo que imagens são recrutadas. Por participar da dimensão física, a voz precisa dialogar com elas. Mas o afeto não é uma imagem, funda um tipo de realidade que não é o da relação – por mais que esse ainda seja um recurso improvisado para explicá-lo. O afeto é um domínio de afirmação e pensar é agir nesse domínio.
Uma criança perguntou se esse era um texto ou um poema. Perguntei o que ela considerava ser cada uma dessas coisas. A resposta foi que texto é uma história de ações, e poesia, uma expressão de afetos. Disse que estava me esforçando para viver antes dessa e de qualquer outra pergunta. Estava aprendendo a afirmar.
Foi publicada na revista Germina mais uma antologia do Laboratório de Criação Poética: palavra em risco: 14 novos poetas brasileiros (org. claudio daniel).
A antologia conta com os poetas Edelson Nagues, Marcela Cividanes Gallic, Caco Graco Maia, Iolanda Costa, Kátia Marchese, eu, Guilherme Delgado, Maria Marta Nardi, Gustavo Verdrame, Mari Quarentei, Bruno Gaudêncio, Marcia Tigani, Marcia Friggi e Yara Darin.
Os dois poemas publicados por mim:
*
OSTENSÓRIO
Contigo forjei
vinte-e- quatro dentes sacros
Arrancados um a um
chocalham no cálice de sangue
A pala de linho
recobre essa dádiva
Seu adorno é o presente
da mandíbula que nunca fecha
*
HÚMUS
veia cava púrpura
volta o caule
foi preciso ir mais longe
o cristal do problema
nas veias das hortas
ninhos crescem
nas calhas de chuva
aqueles de mil patas
ferem azulejos
sangram lavatórios
foi preciso ir mais fundo
o retorno do adjeto
nas tramas do fonema
cantos proliferam
nas glotes dos pardais
aqueles de mil oceanos
jogam dados
lambem certezas
volta o caule
veia cava púrpura
Criar significa: conseguir ser mais preciso. Essa é a necessidade que leva à invenção de ferramentas. Sendo assim, Pensar é, antes de tudo, entender e, consequentemente, desenvolver as ferramentas que levam à construção do que se Pensa. Qual o nome dado a uma ferramenta que produz ferramentas? Uma máquina. Nesse caso, uma Máquina de Guerra, que só será útil na luta por aquilo que só pode ser alvo de conquista e nunca de posse: o Futuro.
Saiu fevereiro uma breve antologia de alguns dos Poetas do Laboratório de Criação Poética (desenvolvido pelo Claudio Daniel) na revista MUSA RARA – Literatura e Adjacências. Dois poemas meus e de vários outros Poetas. Para ler a publicação completa, clique aqui. A seguir, os poemas publicados por mim.
[1]
a tua carne
entre os dentes dos meus ossos
semente e fronteira
há fúria nas palavras
náufragos incontornáveis
fuga cheiro água sal
onde viemos parar?
o que de tão impensado nos comete?
o urro dos bugios
tem a força da lança
que irriga feridas
nenhum punhado de vestígios
será motivo suficiente:
covardias indevassáveis
a língua do subterrâneo
emerge no fruto violado
comeremos
comeremos até que se possa fazer
a saúde dos corpos
disso
rituais probabilísticos
multiplicados ao indefinido
única ciência dos simulacros
***
[2]
tenho armas
e invento verdades
os extenso atalhos do acaso
nome destino
na revoada dos grumios
gritam os cantos de parede
nunca venha tão perto
deuses comem certo
homens pelas beiradas
demônios erram por vontade
ao nome daqueles cantos